Quando vivenciamos uma situação na qual entendemos que fomos rejeitados, criticados, negligenciados ou abandonados, é comum que, por um momento, sejam ativados sentimentos de tristeza e raiva (direcionada a si ou ao outro). Os sentimentos, mesmo sendo desagradáveis, podem ter um sentido para o seu existir e pode ser que os mesmos estejam bastante compatíveis ao contexto. Por exemplo, quando sentimos tristeza estamos lidando com uma sensação de perda; quando sentimos raiva há a intenção de repelir algo ou alguém. Na prática clínica é sempre importante o terapeuta tentar se conectar empaticamente ao cliente nos momentos que apresentar tais sentimentos; é seu papel acolher, entender e validar o sentimento do mesmo.
Entretanto, vamos focar nossa reflexão deste texto em sujeitos que, não de forma voluntária, apresentam com maior frequência, intensidade e duração sentimentos desagradáveis associados à sensação de rejeição. Respostas emocionais que muitas vezes parecem ser desproporcionais ou não estar compatíveis ao contexto.
De acordo com os estudos de John Bolby, a sensação de insegurança na relação, a hipersensibilidade à rejeição, o medo do abandono, a dependência afetiva, têm uma relação direta com as experiências vividas durante a primeira infância. Para este pesquisador o apego é biologicamente motivado por uma busca por conforto e segurança. Relações inseguras com figuras de apego ficam armazenadas em uma memória primitiva e influenciam na formação de modelos internos que nortearão as expectativas futuras do sujeito sobre si e sobre o mundo, a partir das representações mentais da pessoa e de suas figuras de apego. A teoria do apego, mesmo sendo de base analítica, sofreu duras críticas de psicanalistas freudianos porque a consideraram muito mecanicista. Posteriormente, influenciou muito o desenvolvimento da Terapia do Esquema, com diversos estudos e aplicações propostos por Arnoud Arntz e Jeffrey Young.
Aaron Beck e Albert Ellis nos ensinam a focar mais nossa investigação em dados relevantes da infância que podem ser mais facilmente acessados nas entrevistas de avaliação e podem ser utilizados para fazermos a conceitualização do caso. Dados relevantes do passado, especialmente no período da infância, que foram armazenados na memória como sendo experiências de desconexão, rejeição ou abuso, podem levar uma pessoa a estabelecer crenças de desamor. As crenças influenciam de forma direta a forma como interpretamos as situações. Estes pensamentos automáticos ativam respostas emocionais e comportamentais compatíveis.
Por exemplo, quando uma pessoa que está sofrendo com grande intensidade e por muito tempo com a sensação de rejeição diante de uma situação, é importante que o terapeuta investigue e questione para entender se a mesma está ativando distorções cognitivas, como: tirania dos deveria, personificação, visão em foco, catastrofização, leitura mental. Estes pensamentos podem estar atrelados a uma crença a respeito de si mesmo. Aaron Beck nos traz alguns exemplos de crenças de desamor que os clientes podem apresentar: ‘não sou amável’, ‘sou indesejável’, ‘sou diferente’, ‘sou um desajustado’. Percebam que há a ideia de que a pessoa não é boa o suficiente para ser amada, não tem nada a oferecer em uma relação, ficará sozinha, será sempre rejeitada, abandonada. O melhor caminho para revelar a crença central é com o uso da seta descendente. Após esta etapa é possível focar no questionamento socrático para verificar a possibilidade de reestruturação cognitiva.
Para fazer aqui uma singela homenagem ao genial Aaron Beck, que completará 100 anos neste mês, assista a estes dois videos cujos links estão a seguir. O primeiro mostra o professor ensinando a fazer o questionamento socrático de pensamentos automáticos, ilustrando com um exemplo, em um processo de descoberta guiada. Sempre bom lembrar que não é adequado persuadir o cliente a interpretar a situação como nós entendemos ou repetir frases afirmativas, com conteúdos que nós terapeutas consideramos ser positivos (vídeo 1: Beck haciendo reestructuracion cognitiva)
No segundo vídeo Beck explica que há momentos nos quais podemos mudar a direção, sair da tentativa de favorecer uma reestrutração cognitiva pelo questionamento socrático, e propor um experimento comportamental, para motivar novas experiências, novas informações, novos significados (vídeo 2: minuto 3:30 - O legado de Freud: Aaron Beck, Eric Kandel, Steven Roose e Peter Fonagy ).
Outro caminho interessante é debater a crença número 1 das 12 crenças irracionais estudadas por Albert Ellis: “É absolutamente necessário para mim ser sempre amado e aprovado pelas pessoas que me são importantes.” A proposta de debater a crença disfuncional pode ser continuada durante várias sessões, revisitando e escrevendo evidências a favor e contra a crença; podendo ainda listar fatos favoráveis ou contra uma crença alternativa, mais adaptativa/funcional.
Para quem gosta de trabalhar utilizando conceitos e intervenções da Terapia do Esquema, é muito interessante colocar na conceitualização do caso exemplos de respostas de enfrentamento que o cliente costuma apresentar quando há a ativação do esquema de abandono. Jeffrey Young nos coloca alguns exemplos.
1) Resignação: a pessoa pode ativar com frequência o medo de vir a ser abandonado ou aceitar manter relacionamento com parceiros com os quais não consegue estabelecer maior compromisso;
2) Evitação: a pessoa pode evitar assumir relacionamentos íntimos - quanto mais eu me abrir e me entregar mais eu vou sofrer quando eu for abandonado;
3) Hipercompensação: pode ativar um ciume patológico - “sufocar” o parceiro - a ponto de afastá-lo ou causar pequenas separações em função dos desentendimentos criados.
Ainda na proposta da Terapia do Esquema, clientes com esquemas atrelados ao domínio desconexão e rejeição podem apresentar melhora com o uso de estratégias mais experienciais que visam a reparentalização limitada e a resignificação de memórias. Com a exposição imaginária às memórias da infância o objetivo é tentar satisfazer necessidades emocionais não atendidas da criança vulnerável. O trabalho sobre imagens mentais em casos de memórias traumáticas visam a liberação de sentimentos represados, proporcionar proteção e conforto, remetendo-o ao adulto saudável.
Outro “tempero” importante para acrescentarmos no plano de tratamento de pessoas que apresentam crenças de desamor é promover reflexões e trabalhar estratégias que visam a autocompaixão. Considerem os estudos de Paul Gilbert e sua proposta da Terapia Focada na Compaixão. Acolhermos mais nosso sofrimento com autocompaixão pode ajudar a reduzir o sofrimento. Seres humanos são programados, neurofisiologicamente, a sentir segurança a partir do acolhimento, do apoio e do toque. Um caminho interessante para reduzir os sentimentos intensos e desagradáveis que aparecem quando vivenciamos a sensação de rejeição é o uso das práticas contemplativas e da promoção da autobondade. Estas estratégias podem ativar em nosso cérebro o circuito da segurança, da paz interior. Um exercício muito simples para propormos ao cliente quando o mesmo estiver hipersensível emocionalmente é a projeção.
Feche os olhos e tente imaginar que um querido amigo seu está vivenciando exatamente a mesma situação que você , o que você diria para ele neste momento? Ao olhar a situação “de fora” há maior tendência de conseguirmos usar melhor a razão e de sermos mais compassivos.
Texto elaborado por: Dr. Rafael Thomaz Psicólogo clínico, professor e pesquisador
Referências:
Beck, A.; Davis, D.; Freeman, A. (2017). Terapia cognitiva dos transtornos da personalidade. Porto Alegre: Artmed.
Beck, A.; Rush, A.; Shaw, B.; Emery, G. (1997). Terapia cognitiva da depressão. Porto Alegre: Artmed.
Ellis, E.; Grieger, R. (2002). Manual de Terapia Emotivo Comportamental. Desclée de Brouwer.
Yong, J.; Klosko, J.; Weishaar, M. (2008). Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed.