Essa é uma dúvida bastante comum que terapeutas recém formados costumam trazer para a supervisão de casos clínicos. De início, posso afirmar que, de acordo com estudos científicos recentes, não só é possível abordar este assunto como muitas vezes é necessário.
Transcendência e espiritualidade foram consideradas como sendo dimensões importantes a serem abordadas em terapia nas obras de Carl Rogers, com a proposta da terapia humanista existencial. Entretanto, somente a partir da década 1990 é possível detectar um aumento do número de pesquisas científicas que apontam de forma mais clara os possíveis benefícios para saúde mental com algumas práticas religiosas ou que visam desenvolver a espiritualidade.
Entendamos aqui neste texto que religiosidade ocorre quando está presente na vida do sujeito um conjunto de crenças, valores, estilo de vida e práticas devocionais a um nome, entidade ou uma figura institucional. Espiritualidade, por sua vez, podemos definir como sendo uma propensão humana a buscar significado para a vida - e também para o pós-vida - por meio de conceitos que transcendem o tangível - há uma procura de um sentido de conexão com algo maior que si próprio. Assim, o desenvolvimento e a expressão da espiritualidade pode ou não estar ligada a uma experiência religiosa.
Sabemos que as crenças centrais e os valores pessoais são estabelecidos a partir de experiências passadas. Como vivenciamos e como armazenamos em nossas memórias esses dados relevantes do passado irão influenciar na visão que temos a respeito de nós mesmos, do mundo e do futuro. Experiências religiosas/espirituais de forma direta ou de forma indireta - por conta da influência de instituições religiosas na cultura vigente - podem influenciar nos aprendizados e na origem de nossas crenças centrais.
Como a religiosidade e a espiritualidade podem influenciar para promover benefícios na saúde mental de nosso cliente?
Estudos em psicologia positiva apontam que as três principais fontes de satisfação que um ser humano costuma buscar são:
1) os prazeres momentâneos - uma fonte mais etérea. Pessoas mais impulsivas, que levam uma vida mais hedônica, costumam focar mais nesta fonte;
2) o engajamento - mais intensa que a primeira fonte. Faz-se mais presente na vida de sujeitos que apresentam maior capacidade de se conectar empaticamente. É possível termos sensação de bem estar ao perceber o bem estar ou o alívio do desconforto de uma outra pessoa. Além disso, podemos reduzir a supressão emocional, expressando e validando nossas emoções;
3) o propósito - esta fonte de satisfação se mostra mais intensa do que todas as outras somadas. Tem a ver com direcionar nossa vida a um lugar no qual conseguimos desenvolver e expressar nossas principais forças e virtudes. Pode haver um entendimento de que, dentro do contexto vivido, a vida importa e será possível deixar algum legado.1
Dito isso, é possível que algumas reflexões e práticas entendidas pela pessoa como sendo experiências religiosas/espirituais possam favorecer a maior inserção das fontes de satisfação 2 e 3 no decorrer da vida.
As pesquisas neurocientíficas de Richard Davidson apontam que um cérebro saudável é um cérebro bondoso.2,3
São estudos que vão ao encontro dos achados de Paul Gilbert, que traz a proposta da Terapia Focada na Compaixão.4 Alguns componentes são essenciais para promover bem estar subjetivo:
1) a conexão com o momento presente - não ficar “mentalmente preso” ao passado, ruminando pensamentos recriminatórios do tipo “deveria”, e não entrar em fusão com pensamentos “e se... algo ruim”, que são falsas projeções futuras catastróficas,
2) a flexibilidade cognitiva - reduzir a frequência de pensamentos tudo ou nada e ser capaz de enxergar por outra perspectiva, mais otimista, possíveis adversidades; e
3) as práticas de compaixão e autocompaixão.2,3,4
Observando os relatos de nossos clientes, é possível perceber em alguns casos, que práticas consideradas pela pessoa como sendo religiosas/espirituais contribuir para estarem mais presentes esses três componentes, por meio de: atividades contemplativas, reflexões que estimulam a aceitação psicológica ou uma perspectiva mais otimista e práticas que favorecem a compaixão.2,5
Niemic, estudioso das forças e virtudes humanas, aponta que a espiritualidade é uma força que, quando mais desenvolvida e expressa, apresenta com alta correlação com outras forças: gratidão, esperança, entusiasmo, capacidade de expressar amor e bondade.5 Como bem pontuou Bertrand Russel no ensaio “Elogio ao ócio”, uma virtude só pode ser considerada uma virtude se vier acompanhada de uma outra virtude que é a bondade. Se as práticas religiosas/espirituais favorecem a bondade e a autobondade, isso é excelente!
Além disso, há ainda a possibilidade de haver a sensação de pertencimento e acolhimento social dentro de alguns grupos ou instituições.
Outro ponto interessante. Estudos em neurociência apontam que pessoas em estado de oração, que relatam a sensação de estarem conectadas a uma força externa e superior, dois pontos nos lobos temporais do cérebro são ativados. Os cientistas chamaram de ponto Deus no cérebro. Por sua vez, em estado de meditação, redes cerebrais são ativadas incluindo a região da ínsula - área cerebral responsável por codificar sensações físicas em sentimentos. Após a ativação destas áreas cerebrais, as quais não costumam ser ativadas em outras atividades rotineiras, há uma sensação de bem estar, reenergização, redução da velocidade e intensidade de pensamentos e mudança na capacidade de manter o foco.
Em que momentos então a religião pode influenciar para causar ou agravar queixas trazidas às sessões de terapia?
Pode acontecer de nosso cliente, familiares com quem o cliente convive, um grupo em uma instituição religiosa ou um líder religioso incentivarem práticas que alimentam o surgimento e a manutenção de crenças rígidas. A partir daí, é possível que haja mais frequentemente a ativação de pensamentos dicotômicos (tudo ou nada) e pensamentos recriminatórios /autorrecriminatórios (do tipo deveria, não deveria). É possível perceber frequentemente no discurso advérbios de negação e conjunções adversativas.
Claramente a presença de crenças mais rígidas dificulta a capacidade de perspectiva e leva a julgamentos mais severos de “certo ou errado”, gerando mais situações de conflitos intra e interpessoais. Quando isso acontece ocorre, há um processo que vai na contramão da possibilidade de desenvolvimento dos componentes que apontamos acima como sendo importantes para promoção do bem estar.6 Nestes casos há constante criticismo, podendo haver também o perfeccionismo autoorientado e orientado aos outros. Nesta condição há pouca conexão com o momento presente, pouca capacidade de flexibilidade cognitiva, pouca conexão empática e, consequentemente, menos compaixão.4
Quando nos deparamos com pessoas ou instituições religiosas com uma postura mais rígida é possível observar que há muitas regras, dogmas, cobranças impostas. O vigiar e punir se faz muito presente - tanto externamente, quanto internamente. Além disso, diante de situações de conflito, é muito preocupante quando há uma tentativa de impor decisões usando como argumentos somente informações ou recomendações interpretadas em textos que foram escritos há 2000 - 3000 anos atrás, por povos diferentes em contextos completamente diferentes do contexto atual. Dado que ética é uma questão sempre contemporânea, depende de buscar entender as variáveis presentes e o contexto, tentar uma conexão empática e apresentar boas habilidades de comunicação para se buscar um caminho que pretende ser aquele que causará o menor dano possível a todos envolvidos.
Outra condição adversa com a qual podemos nos deparar na clínica é que há pessoas que experienciam a sensação de desconexão/rejeição dentro do contexto religioso. Algumas pessoas podem experimentar a sensação de não pertencimento, recriminação, rotulação, exclusão, indiferença, não aceitação. A frustração ao se deparar com a hipocrisia nestes momentos costuma acontecer, ou seja, deparar-se com pessoas que emitem comportamentos (ou serem reveladas ações pelos discursos de terceiros) que são claramente muito contraditórios aos valores que são/foram propagados por palavras como sendo importantes.
Em qualquer contexto no qual haja um grupo de pessoas, no qual seja possível mentir, burlar regras, enganar, abusar,... para conseguir ascender rapidamente e ter acesso a qualquer tipo de poder: dinheiro, status, fama, seguidores... podemos encontrar com maior frequência pessoas com traços de sociopatia e/ou narcisismo. Um grupo ou instituição religiosa não está livre disto.
Há algumas ótimas obras literárias e cinematográficas que jogam luz aos males que podem ser promovidos dentro do contexto de uma instituição ou grupo religioso. Recomendo aqui a vocês algumas:
1 - O livro “Nada ortodoxa”, que virou minissérie;
2 - O romance “O conto de Aia” que virou uma série de grande sucesso;
3 - O documentário “Ele me nomeou Malala”, que narra parte da história de Malala Yousafzai - ganhadora do Nobel da Paz de 2014 , segue atuando por causas humanitárias após sobreviver a um tiro na cabeça pelo Talibã por defender o direito de mulheres e meninas terem educação;
4 - O documentário “João de Deus - cura e crime”, que expõe condições de abuso por parte de um famoso médium;
5 - O documentário “Só não conte para ninguém”, o qual traz relatos diretos e personalizados de vítimas de crimes de pedofilia cometidos por padres dentro da igreja católica;
6 - O documentário “Wild Wild Country”, apresenta diversas atitudes antiéticas e abusivas de Osho, fundador e líder de um movimento espiritual com mais de 10.000 seguidores, apelidado como “guru do sexo”;
7 - O documentário de curta metragem ”O Capital da Fé”, expõe o imagens que denotam um contexto exploratório de fiéis dentro de algumas Igrejas Evangélicas brasileiras por parte de alguns pastores - expõe contradições, espetacularização da fé e enormes montantes de dinheiro que são desviados gerando enriquecimento ilícito de líderes destas instituições.
Referências:
1 - Hashid, T.; Seligman, M. (2019). Psicoterapia positiva: manual do terapeuta. Porto Alegre: Artmed.
2 - Davidson, R.; Begley, S. (2017). O estilo do cérebro emocional. Rio de Janeiro : Sextante.
3 - Goleman, D.; Davidson, R. (2016). A ciência da meditação: como transforma a mente, cérebro e corpo.
4 - Gilbert, P. (2020). Terapia Focada na Compaixão. São Paulo: Hogrefe.
5 - Niemic, R. (2017). Intervenções com forças de caráter. Associação Latino Americana de Psicologia Positiva. São Paulo: Hogrefe.
6 - Beck, A.; Davis, D.; Freeman, A. (2017). Terapia cognitiva dos transtornos de personalidade. 3a ed. Porto Alegre: Artmed.
Texto elaborado por: Dr. Rafael Thomaz. Psicólogo clínico, professor e pesquisador.
Diretor do FOCO: Instituto Carioca de TCC e da Clínica FOCO.
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