Vivemos em uma sociedade que valoriza a busca por e a exposição de beleza, status, dinheiro, poder. Estamos em uma época na qual expor a própria vulnerabilidade é algo muito difícil de acontecer. Nas mídias sociais é comum as pessoas exporem o que entendem que seria bem avaliado pelos outros e omitirem quaisquer conteúdos que entendem que poderia ser mal avaliado. Dito isto, podemos entender que há muitas pessoas que, por influência de aspectos socioculturais vigentes, apresentam comportamentos que nos remetem ao narcisismo.
Alguns teóricos apontam que haveria nos dias atuais uma epidemia de narcisismo. É muito delicado afirmar isso, visto que, para que uma pessoa possa receber o diagnóstico de transtorno de personalidade narcisista, é necessário que seja avaliada por um profissional de saúde mental e que apresente 5 ou mais dos 9 critérios propostos (veremos mais adiante).
Caso os critérios estejam presentes, a pessoa narcisista fará quem convive com a mesma se deparar com atitudes que ativam com frequência emoções de valência negativa. A depender da frequência e intensidade do convívio pode até mesmo se configurar uma relação de abuso. Conhecer as possíveis caraterísticas que uma pessoa narcisista e entender como lidar com a mesma pode lhe preparar para reduzir danos em sua vida.
Entenda e identifique o narcisismo
Pessoas que preenchem critérios para transtorno de personalidade narcisista são indivíduos: com baixa capacidade de se conectar empaticamente (por vezes expressam arrogância ou competitividade desmedida); buscam estar em destaque (status, fama, dinheiro, beleza ou poder/influência); podem estabelecer relações instrumentais (por vezes abusiva); expõem o que consideram que será admirado pelos outros, escondem as próprias vulnerabilidades (não falam sobre os próprios defeitos ou aspectos que entendem que precisam melhorar); têm baixíssimo senso de autocrítica (não pedem perdão); têm dificuldade em controlar os próprios impulsos (buscam o próprio prazer ou aliviar o próprio desconforto sem considerar os efeitos para os outros) e apresentam dificuldade para tolerar a frustração (como crianças mimadas dentro do corpo de um adulto).
Se você suspeita que está convivendo com uma pessoa narcisista, avalie abaixo considerando os critérios diagnósticos do manual diagnóstico de transtornos mentais
(DSM-5):
( ) Exagera sua própria importância e talentos (grandiosidade).
( ) Cria expectativas de realizações ilimitadas: influência, poder, inteligência, beleza ou amor perfeito.
( ) Pensa ser especial e único e que deve se associar apenas com pessoas que considera ser especiais.
( ) Demonstra necessidade de ser incondicionalmente admirado.
( ) Demonstra ressentimento por que acha que merece ser mais reconhecido.
( ) Explora pessoas ou estabelece relações instrumentais para alcançar objetivos próprios.
( ) Não se conecta empaticamente com as pessoas.
( ) Demonstra inveja dos outros e acha que outros o invejam.
( ) Demonstra arrogância e orgulho com frequência.
Apenas explicando, não justificando
Não é adequado incentivar a aceitação diante de uma condição de relação abusiva. Caso esteja em convívio com uma pessoa narcisista, algumas ações importantes podem ser implementadas para reduzir ao máximo a probabilidade de você sofrer danos.
Com o intuito de diminuir a intensidade de alguns sentimentos desagradáveis que são ativados quando convivemos com pessoas que apresentam características de narcisismo, tente entender que:
É comum pessoas com traços narcisistas durante a infância terem vivenciado uma ou mais das seguintes experiências:
1) Foram crianças mimadas - aprenderam que ter privilégios, suas necessidades atendidas mesmo que cause danos aos outros e a visão de serem melhores que os outros foi algo incentivado e modelado;
2) Foram crianças dependentes - os cuidadores superprotegeram e não favoreceram o desenvolvimento de competências adequadas à idade para gerirem tarefas e interações sociais;
3) Foram solitários e carentes - o afeto que recebiam de seus pais dependia de seu desempenho - crianças criticadas em excesso, cobradas para serem perfeitas, entendendo que nunca seriam bons o suficiente - podem ter sofrido abuso emocional e/ou psicológico, bullying, o que os fez pensar que são pessoas defeituosas.
Os esquemas mais comuns dos narcisistas são grandiosidade / superioridade, autocontrole insuficiente, busca de aprovação, defectividade, desconfiança, privação emocional, padrões excessivos de cobrança.
Os narcisistas sabem ser atraentes, sutis e manipuladores quando é de seu interesse. Podem “simular empatia”, tentando dizer ao outro o que entendem que o outro gostaria de ouvir quando entendem que poderiam ganhar algo dentro do contexto.
Não é pessoal. Os narcisistas são assim no mundo, não agem assim somente com você. Qualquer pessoa que “gravite” ao seu redor irá sofrer com sua disfuncionalidade. Conversar com outras pessoas que convivem ou conviveram com esta pessoa pode ajudar a entender melhor isso.
Haverá uma tendência de um narcisista ser menos empático, mais arrogante, mais egoísta, quando está interagindo com pessoas que pensam que não poderiam afetar suas trajetórias ou lhes dar uma punição qualquer. Podem, por exemplo, na hierarquia do trabalho tratar bem superiores e destratar subordinados.
Pessoas com crenças rígidas utilizam frequentemente em seus discursos: 1) expressões exageradas, como: sempre, nada, tudo, toda vez, nunca...; 2) advérbios de negação: não, nada, jamais, de jeito nenhum,...; 3) conjunções adversativas: mas, porém, entretanto,... É uma forma de se manterem na posição em que estão. A ideia é: o mundo que mude para se adaptar a mim e não o inverso.
As pessoas que mais sofrem convivendo com narcisistas são pessoas com baixa autoestima, que apresentam crenças de desvalor e de desamor. As falas depreciativas do narcisista terão mais valor porque a própria pessoa cogita internamente e inadequadamente ser verdade aquilo que foi dito. Além disso, é possível que haja menos raiva/rancor, que aceite “migalhas de afeto” e que relações de abuso sejam perpetuadas. Esquemas desadaptativos de autossacrifício, subjugação, abandono, defectividade, privação emocional, padrão excessivo de cobrança, são possíveis esquemas que se retroalimentam com os esquemas de um narcisista em um relacionamento.
2. Como lidar com um narcisista
Quando estamos diante de um narcisista a escolha pela ação adequada não é uma tarefa simples. Depende da análise de diversas variáveis: em qual ambiente estão, qual é o grau de intimidade (ou hierarquia) da relação, com que frequência acontecem as atitudes inadequadas, quantas pessoas estão envolvidas no contexto ... É essencial avaliar prós e contras e se a sua ação tem a intenção de resolver o problema sem criar novos problemas.
Algo que pode ajudar é fazer a projeção: o que eu diria para meu melhor amigo(a) se ele(a) estivesse vivendo exatamente a mesma situação que eu?
Listo abaixo algumas ações possíveis que podem reduzir significativamente danos na convivência com um narcisista:
Não monte um palco
Tente se conectar ao momento presente e observe as expressões, a fala do sujeito. Tente detectar as características apresentadas neste texto informativo.
Quando ele estiver tentando se vangloriar mantenha a polidez e não “monte um palco”.
Elogie apenas o necessário. Apresente as possíveis variáveis presentes que também influenciaram para os resultados.
Fale de forma assertiva
Treine com um terapeuta para conseguir falar o que sente, o que pensa e o que gostaria. Em alguns contextos falar de forma assertiva com uma pessoa narcisista pode inibir atitudes abusivas (ela pode inclusive evitar você e procurar outras vítimas). Suprimir emoções, ser passivo, se encolher, podem ser atitudes que irão aumentar a frequência de uma postura agressiva/intimidadora por parte do narcisista - afinal conseguiu o que queria tendo essa postura inadequada.
Armazene provas
Pessoas que apresentam características de personalidade disfuncionais selecionam ou distorcem com frequência argumentos para justificarem seus comportamentos inadequados.
Se possível, converse sobre assuntos importantes na presença de alguma outra pessoa sensata.
Sempre que possível registre o que aconteceu no encontro, com gravação ou registro por escrito (mesmo que o registro seja feito após o encontro). Caso haja uma atitude qualquer inadequada, armazene dados do ocorrido.
No caso de haver danos morais ou à saúde mental, especialmente se há uma condição persistente de abuso, utilize as provas armazenadas e mova processos institucionais ou legais contra a pessoa.
Pesquise se outras pessoas também sofreram naquele ambiente de forma semelhante. Uma queixa ou processo envolvendo mais pessoas ganha mais força e seriedade na narrativa.
Críticas no privado
Receber uma crítica na presença de outras pessoas pode despertar maior agressividade de um narcisista , dado que a imagem dele é o que mais vale.
Quando for necessário dentro do contexto, caso seja possível, faça a crítica em uma conversa a dois. Isso pode evitar que a pessoa narcisista desperte desnecessariamente a desconfiança excessiva, a ira ou a necessidade de vingança.
Redirecione o holofote
É comum pessoas com traços narcisistas apontarem para possíveis falhas, erros ou defeitos do outro de forma inadequada na presença de outras pessoas, pois quando fazem isso há um direcionamento da atenção ao “problema” do outro e não há atenção aos defeitos do narcisista.
Quando se sentem ameaçados podem até mesmo ter uma postura mais agressiva ou intimidadora.
Diante de uma fala recrimitória ou agressiva, tente manter o seu tom de voz baixo e, olhando nos olhos, faça perguntas como: você poderia me explicar melhor por qual motivo você está falando isso? Baseado em que evidências você afirma isso? Eu não entendi muito bem o que você quis dizer, você poderia repetir? Isso pode inibir o comportamento depreciativo do narcisista.
Reconheça e expresse mais as suas forças e virtudes
Quando estamos com boa autoestima uma fala depreciativa do outro não nos causam muito impacto. Em alguns contextos será possível entender que a fala do outro é só um pensamento do outro, considerando a perspectiva, as crenças e/ou as intenções do mesmo.
Aproxime-se de pessoas mais empáticas
Considerando que esteja em um ambiente que considera tóxico, convivendo com alguém que tem uma postura mais egocêntrica, competitiva, egoísta, intolerante, agressivo, arrogante,... Não sendo possível um movimento imediato para inibir estes comportamentos ou se afastar desta pessoa, tente reconhecer nos ambientes que frequenta quem seriam pessoas mais empáticas e tente passar mais tempo com estas pessoas, criando um “microuniverso” que traria mais sensação de acolhimento e descontração, ao invés de vigilância e apreensão.
Escolha as brigas que valem à pena ser travadas
Há alguns contextos diante dos quais pode ser adequado simplesmente ignorar a pessoa que está se portando como sendo dona da verdade, arrogante, hipercrítico (inclusive se afastando fisicamente). Esta resposta se encaixa bem, por exemplo, quando você está sozinho com esta pessoa e percebeu que a fala inadequada dela não lhe causará danos, é uma forma dela ganhar atenção ou disferir suas insatisfações.
Recomende psicoterapia
Dificilmente uma pessoa narcisista irá buscar tratamento psicoterápico com a intenção de mudar suas características da personalidade que são disfuncionais. Como foi dito anteriormente, são pessoas com crenças/esquemas muito rígidos, por isso entendem que a culpa, o problema, é do outro.
Entretanto, se você infelizmente precisa manter por um tempo a convivência com uma pessoa narcisista, porque há uma relação afetiva ou dependência financeira por exemplo, tente indicar que a mesma busque tratamento pela terapia cognitivo-comportamental.
É possível que o narcisista aceite de início buscar ajuda em função de apresentar outras queixas como: ataques de pânico, estresse excessivo, déficit de atenção, disfunções sexuais, ... daí, durante o tratamento, um psicoterapeuta com boas competências clínicas pode abordar e tentar auxiliar na mudança das características da personalidade que são disfuncionais, incentivar a melhora da empatia e, claro, mostrar a importância disto para a melhora da qualidade dos relacionamentos.
Referências:
APA. (2013). Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição - DSM-5. Washington, DC: American Psychiatric Pres.
Behary, W.T. (2013). Desarmando o Narcisista: sobrevivendo e prosperando com o egocêntrico. Novo Hamburgo: Sinopsys.
Yong, J.; Klosko, J.; Weishaar, M. (2008). Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed.
Texto elaborado por:
Rafael Thomaz
Pós-doutor em saúde mental
Coordenador do NIPPACC / IPUB / UFRJ
Diretor da Clínica FOCO
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